Arte, porque a vida por si só não deu conta dela mesma





domingo, 14 de setembro de 2014

Cadê?


Goord Morning


Já levantei, liguei o som - Caetano é sempre a melhor pedida pra animar a manhã. Depois, Baleiro, mesmo que eu não tenha acordado com vontade de beijar o português da padaria - escovei os dentes, tomei um banho, li o terceiro capítulo de um clássico do Veríssimo cujo nome não me lembro agora, vesti uma roupa descolada dessas "in", na moda, cachecol colorido - está frio e me sugeriram cores - passei o perfume de fragrância amadeirada que meu ex me deu no dia dos namorados, tomei um balde de café e comi ima torrada de cottage com peito de peru. Escovei os dentes de novo e tirei o cachecol. É que tenho de me maquiar pra dar um ânimo à pele da carne que me veste os ossos. Base, corretivo abaixo dos olhos e acima das pálpebras, pó compacto pra tirar o brilho, blush cor terra, rímel. Maquiagem leve, para o dia. Coloco de volta o cachecol. Mais uma burrifada de perfume. Sempre parece que me falta a última. Calcei um all star azul pra me lembrar da Cássia. Queria roubar um cheque mas não está dentro dos meus princípios, e descobri que se quiser viver mais que ela, não devo tomar meus pileques.
Ajoelhei na cabeceira da cama e fiz uma oração de gratidão. Lembrei do meu irmão caçula, do meu pai, da minha tia parceiríssima, do meu avô que me iniciou nas letras e guardou numa pasta todos os meus poemas da sua vida, da minha melhor amiga, Cami, que subitamente fo-se aos 20 com um aneurisma e cá eu...  não borrei a maquiagem. Peguei a chave de uma casa que não é minha, conferi a bolsa: necessaire, livro, bolsa de remédios, casaco, guarda-chuva descartável, celular, carteira, ok. Chamei o elevador, entrei, desci. TCHOCK. O porteiro abriu a porta. - "Putz, o carregador do celular" - Nunca saio sem carregador de celular. Também nunca saio de uma vez só. Talvez uma coisa esteja ligada a outra. Talvez... I got it! Carregador na bolsa, desliguei o Cazuza que eu já tinha esquecido ligadasso no meu quarto, encontro com minha mãe no hall, descemos, mami foi em direção a garagem pegar seu carro para o trabalho depois de me dizer tchau. Ando pelo corredor de serviço. TCHOCK. Abro a porta do prédio. TCHOCK. A porta se fecha. Uma vizinha vem vindo com um poodle numa mão e um saco de pão na outra. Ela sorri, eu respondo "Bom dia". Coloco a bolsa no ombro.
Olho pra cima e o céu está azul, duas nuvens bem rarefeitas, sol de inverno. Caminho na calçada até a beira da rua. Enquanto espero, sinto-me perfeita para morrer.

SORRY


domingo, 7 de setembro de 2014

eu e ela somos nós






Ela não precisa de espaço nem tempo, dentro e fora, nem motivo ou causa, nem ponteiro parado, televisão sem som, som quebrado, multidão vazia, nem de gente cheia de tudo, nem de tudo nem de nada, nem de coisa alguma. Ela é coisa democrática, silenciosa, verborrágica - ela em qualquer forma. Ela na veia correndo por todo corpo, efeito instantâneo e latente. Só lhe dão se você deixar... e um espaço vazio, sem quinas, sem cor, sem gente, sem móveis. Só você e a agulha. Fina, pequena, indolor, prata, na veia, agulha, suave... Ela entra macia e faz aquele tátil pic. Só lhe dão se você deixa entrar. E você deixa. E entra, é denso e seria amargo se tivesse gosto... líquido entrando denso no corpo e o corpo olha pro teto que não há. E o teto é branco e o céu nublado e as espumas também e o azul do mar sem nuvens e o barulho chuá que vai e que vem molhado na areia gelada d'água que cobre e abandona as unhas vermelhas do esmalte risqué que começou a descascar no dedão do pé. E o gelado do coco na garganta que desce enquanto o opala 86 passa preto na rua e buzina antes de o sinal abrir. Os pés caminham sobre areia fofa antes de pisarem no chão de metal desenhado do ônibus da linha 177 que vai em direção a praça Mauá. A agulha sai num rompante do braço mas isso não é nada comparado ao lirismo daquelas montanhas cheias de curvas e árvores, montanhas com nome pão-de-açucar brilhando verdes parecendo veludo na luz que o Sol assina nesse espetáculo... altas belezas naturais logo ali atrás dos espelhos d'água, as águas vistas pela janela que anda ali no asfalto conriscos amarelos bem no aterro do Flamengo. E de repente tudo isso some! Não tão lírico era o gigantesco quase sufocante traseiro da mórbida obesa que sem licença acaba de levantar ao lado e cobrir toda a visão da cena. Ela se vai e a vista... ih! Moço! Abre aqui pra mim? O que se vê é o posto BR na Osvaldo Cruz. Escuro. Está escuro agora. Não estava quando os pés pisaram a areia fofa. Cadeira de madeira vazia sem porteiro atrás da mesa. Nossa, a parede da portaria do prédio é marfim? Não é branca? Jurava que era... E o piso? Que é isso? O piso é de mármore e de losangos e é preto e é branco e... um poste no canto direito? Um poste também de losango e também branco e também preto e alto e colonial e cafona no canto direito! Cafonérrimo! Um poste cafonérrimo no canto direito? 16 anos morando num prédio preto e branco cafonérrimo... Isso é constragedor. As plantas até que não incomodam embora não falem nem andem e pareçam mortas mesmo estando vivas. Ai que nojo!!!! Uma lagartixa branca passando com o rabo pela metade no losango. Será que o rabo da lagartixa ficou se mexendo quando ela o perdeu? De que cor será que ela vê o mundo? Será que ela vê vendo? De repente a lagartixa é cega.... Mas se é cega, pra que que tem olhos? O quê? 25º? O elevador está parado há 10 min no 25º? Ok... Ok... Tudo sob controle... É só a neurótica do 2504 fazendo obra pela 25ª vez. Aquela neurótica com a síndrome do nunca estou satisfeita com nada por isso muda o carro a cada seis meses, a cor do cabelo toda semana, a do esmalte a cada 5 minutos e o marido ela não tem porque antes de assinar os papéis ela resolve que deve mudar também. Escada. O terceiro andar não é tão longe assim, mesmo tendo o play e duas garagens antes. O problemas são essas duas garagens. Ih, a luz! Ficou acesa. Ai! Cadeira reclinável... como essa cadeira é macia. Cadeira grande marrom macia reclinável. Cadeira de preguiçoso. Frio. Merlot. Cadê as taças? Taças de vinho de vidro de cor branca de poeira de anos sem usar. Taças vazias. Taças cheias de nada dentro delas. Taças com o pano que esfrega esfrega esfrega. Transparentes as taças estavam depois do pano e antes do vinho que desce desce desce aos poucos saindo da boca verde de vidro da garrafa do Merlot que saiu da bolsa branca do supermercado coração vermelho cor de unhas descascadas. Computador ligado. Teclas brancas com letras pretas. Duas taças. Uma é minha. conversacomversoeumdedodeprosa.blogspot.com. Nova Postagem escrito em branco dentro de um quadrado laranja. "Ela" foi a primeira palavra antes que o resto das letras começassem a aparecer e... um gole. Duas taças. Uma é minha e a outra é sua. Um gole que desce desce desce e entra denso e seco e amargo desce e caminha por dentro do corpo de todo o corpo e a tela branca, tudo branco - as pareces o chão o teto, não há móveis, não há nada além. E você? No meio. Espaço vazio, sem quinas, sem cor, sem gente, sem móveis. Só você e a agulha. Fina, pequena, indolor, prata, na veia, agulha, suave... Ela entra macia e faz aquele tátil pic. Só lhe dão se você deixa entrar. E você deixa. E entra e é denso... líquido entrando denso no corpo e o corpo olha pro teto que não há. Duas taças entre mim a tela branca povoada por pretas letras que surgem escrevendo p-a-l-a-v-r-a-s dentro do pensamento. Duas taças, a minha é a vazia. Um brinde a nós duas e um gole. E eu te engulo e me embriago de você antes que pense em me engolir e eu fique bêbada pra te esquecer. Mais um brinde.


Estamos juntas e somos uma. EueelA. Só lhe dão se você deixar. E você deixa. E pede mais. Um gole. E o líquido desce vinho e amargo e seco e denso desce desce desce desce desce.
elA

terça-feira, 2 de setembro de 2014