As histórias moram nos detalhes das coisas.
EM BUSCA DO TEATRO PEDINTE
"Oi, meu nome é texto, eu sou meio longo, dá uma preguiciiiiinha, mas me lê aí, vai, por favor?"
TEATRO: A ARTE DE PEDIR - ou COM EVOÉ NÃO SE PERDE A FÉ
Aprendi a ser cara de pau fazendo teatro. E não foi no palco ou na sala de ensaio. Foi pedindo ao porteiro do meu prédio pra pintar o banco do play - "... que é pra usá-lo numa peça..." - pedindo ao outro porteiro pra ensaiar na ante-sala da sauna (já que eu me desentendi com o síndico arrogante, que mora no primeiro andar e me proibiu de ensaiar no salão de festas que fica bem embaixo do quarto dele), pedindo a mesinha retrô que minha vizinha de porta deixou no hall, pedindo a moldura enorme e a cristaleira digna de antiquário que foi guardada/esquecida na garagem pelo cara do 701.
Com os colegas de trabalho, a mesmíssima coisa.
No teatro pobre - não faço aqui nenhuma ligação direta a Grotowski - aprendemos uma série de expressões muito utilizadas pelo operariado jovem do teatro. São eufemismos muito afetuosos ou estimulantes os utilizados quando, na verdade, se quer dizer: tenho um trabalho mas nenhum dinheiro pra você. "É no amor" , "É na raça" - ou no modus cariocão "É na camaradagem" - são os termos que introduzem um convite de trabalho. Eu já apelidei esses convites de "proposta indecente" e , é lógico, a proposta vem feita num tom bem animado que é pra aliviar o impacto e é chamada de indecente pra diminuir a expectativa. E é por aí que se segue a descrição da tal idéia/projeto incrível com verba nenhuma.
É assim mesmo o discurso pedinte: disfarçado de convite ou descontraidamente chamado de "propostinha indecente". Diminutivos também são eficazes. Você disca o telefone, escolhe o tom de voz perfeito e lança essa pra sua colega-atriz, seu amigo-produtor, um conhecido-diretor ou seja lá quem for a sua ficha técnica camarada. Ah! Tem também aquela máxima: "Vai ser bom pra você, vai mostrar seu trabalho, fazer girar o seu nome..." Sim, o sujeito te chama pra mostrar seu trabalho e girar o seu nome no projeto autoral dele sem te pagar nenhum vintém. Nem passagem. Nem ticket alimentação.
Assustou? Escravidão? Não, meu bem, não... Que é isso?! Nem pense numa coisa dessas! Os escravos não pagavam pra trabalhar e mal ou bem, ali na senzala tinham moradia e alimentação. Pra artista, nem senzala, viu? Mas olha... Sem revolta! É assim mesmo. Mas olha... Sem conformismos. Eu acho tudo isso o cúmulo! Mas olha...
É assim mesmo o discurso pedinte: disfarçado de convite ou descontraidamente chamado de "propostinha indecente". Diminutivos também são eficazes. Você disca o telefone, escolhe o tom de voz perfeito e lança essa pra sua colega-atriz, seu amigo-produtor, um conhecido-diretor ou seja lá quem for a sua ficha técnica camarada. Ah! Tem também aquela máxima: "Vai ser bom pra você, vai mostrar seu trabalho, fazer girar o seu nome..." Sim, o sujeito te chama pra mostrar seu trabalho e girar o seu nome no projeto autoral dele sem te pagar nenhum vintém. Nem passagem. Nem ticket alimentação.
Assustou? Escravidão? Não, meu bem, não... Que é isso?! Nem pense numa coisa dessas! Os escravos não pagavam pra trabalhar e mal ou bem, ali na senzala tinham moradia e alimentação. Pra artista, nem senzala, viu? Mas olha... Sem revolta! É assim mesmo. Mas olha... Sem conformismos. Eu acho tudo isso o cúmulo! Mas olha...
No amor e na raça, já pedi e fui pedida. Confesso que tenho mais cara pra pedir bancos do play , ante-salas de sauna e molduras enormes da garagem do que gente (Sim, não se espante, poxa, esse nosso povinho de teatro também é gente).
Mas foi pedindo que minha timidez desceu pelo ralo. E desceu mesmo. Aos quinze anos eu não comprava nem um pão de batata na cantina da escola. Eu tinha uma amiga - Luiza Rêdes, não me desminta - pra fazer isso pra mim. Era a Luiza quem comprava meu pão de batata com requeijão.
Graças ao teatro sem patrocínio não me resta mais um pingo de vergonha nessa cara.
Dioniso abençoe meus porteiros e vizinhos (e tb outros passantes bem aventurados que atravessaram meu caminho com generosidade - ou pena).
É de extrema importância ter atenção às morais de toda essa história que, por mais que pareçam, não são assim tão balela:
Moral da história 1: É pedindo que se aprende.
Moral da história 2: É pedindo que se perde a vergonha na cara (mas a dignidade jamais, a não ser, seu imbecil, que depois de tanto pedir você não entre em cartaz)
Moral da história 3: Teatro se faz pedindo.
Moral da história 4: Se nada der certo, teremos diploma pós doc pra arrumar um trocado no sinal.
Deu pra sacar? O lance é o seguinte: como um bom operário de arte, você está fadado a ser um pedinte. Mesmo fazendo teatro classe média. É raro teatro rico, ou você atende pelos sobrenomes Müller, Botelho ou Falabella?
Resigne-se. Ajoelharás eternamente aos pés de apoiadores, patrocinadores, aprovadores de icms e rouanets. E entre alegrias e dores, a única esperança para nós gozadores sofredores, é que partindo de café três corações, donnana, paitrocinios e playgrounds, um dia chegamos a Era dos Brás. Mas não se anime: com verbas Petro ou Eletro, nossa luta nunca jaz.
E preste atenção: se você não chegar lá tão cedo, não desista. Continue pedindo. Lembre dos seus amigos de infância. Algum deve ter virado diretor de marketing de uma empresa fodona (no seu caso, qualquer empresa mequetrefe também serve, só pra começar, vai). Ah... A empresa não tem o perfil do projeto? Hummm Imaginei. Sa-bi-a. Experiência. Mas é uma empresazinha mequetrefe mesmo, hein! Mas a culpa é sua. Você devia ter feito melhores amizades na infância.
Faça o seguinte: planeje-se. Matricule seu filho num colégio de milionário. Peça bolsa. Peça integral. Você sabe como fazer isso. E peça mesmo. Você precisa ter alguém pra quem pedir dinheiro quando ficar velho.
Ah... Não tem filho? Nem quer ter?
Continue. Ore. Peça pra Apollo, pra Dionioso, Stanislavski, pra Paulo Autran, pra Sergio Brito, pra Cacilda Becker, pra Nietzsche, pra Jah,!!!!! Peça até pra Deus!!!
Jesus!!!! Alguém há de lhe escutar! Agora, se ninguém de atender... ou é problema da Tim ou você tá fazendo alguma merda!
Peraí! Pára tudo! Conseguiu uns cruzados de réis no crowdfunding pra levantar os custos básicos da sua peça? hum! Descansa não! Tá pensando o quê? É brasileiro? É carioca? Não tem nenhum ator famoso ultra global na sua peça que é uma obra prima? Então não vai precisar pedir mais nada. Agora, meu bem, vai ter que IMPLORAR por público. Merda lá!
Bem... quer um segundo pra respirar? Um só. Estou terminando mas tenho mais a dizer. E por favor, não me deixe falando sozinha. Por favor, vai? Sei que texto longo dá preguiça, mas... pô, se coloca no meu lugar? Se colocou? Posso prosseguir?
Então... Por tudo isso, seu pedinte, lembre-se sempre dos designios da Bíblia que fazem referência aos seus semelhantes e nunca, veja bem: NUNCA trate mal o menino das bolinhas no sinal. Ele poderá ajudá-lo com perspicazes lições. Só, por favor, nunca use "Tia" como vocativo. Nem "Dona", eu lhe rogo.
Agora eu vou partindo porque tenho um edital pra preencher. Pedir por escrito é bem menos constrangedor, bem mais chato e com só 10 anos de teatro e nenhum nome de alto escalão da nata do do TBC (Teatro Blasé Carioca) ou do TQBC (Teatro Quase Brodway Carioca) na direção - já que a direção sou eu - dificilmente vou ganhar essa budega. Mas há os milagres. E até conheço a amiga de uma amiga de uma abençoada. Serei ungida. De vinho. Por Baco*. Não perco a fé. Continuarei pedindo. Evoé!
*Baco, por favor, Baco. Tenha misericórdia de minha alma. Prefere que eu te chame de Dioniso? Eu chamo).
Pequeno Conto Sobre Um Fim de Semana no Parque
Marquinhos entrou na livraria.
Pegou um exemplar de Manoel de Barros para crianças.
Sentou-se num abacaxi e leu não mais que duas linhas.
Fechou o livro e deu pouco mais de dois passos até a mãe.
Ela estava sentada num morango.
O guri sentou no morango também e ficou ali olhando a mãe mergulhada no mundo de Clarice.
Ela o sentiu e o olhou. Ele nada disse. Mas tinha a respiração hesitante. Ele colocou a mão perto da orelha diretia da mãe e sussurou:
- Os livros são o parque de diversão da imaginação.
- Mas porque me disse isso no ouvido?
- Eu descobri isso e estou te dando meu segredo de presente.
30
Essa é uma Contagem Regressiva/Agressiva.
Tenho 28 anos, um filho de 9, 2 casamentos nas costas e um acúmulo de infinitas histórias de peso que, Gilberto Braga e Manoel Carlos concordariam, são dignas de folhetim.
Todos sabemos que histórias contam bem mais do que contam os números... Afinal, o que são os números? O que são os números?!(em tom grave, volume alto, intenção incisiva) O que são os números?!!!!! (em tom agudiço estridente, volume altíssimo descontrolado, intenção agressiva sem noçao).
(silêncio)
Palavras pesam muito mais que números (recomposta, tom médio, volume médio, intenção média, toda média). Não, não sou maluca e não, não estou de TPM - embora a minha seja de fato assustadora.
O caso é que hoje eu saí pra almoçar com meu filho num restaurante perto de casa. Foi quando e quando o garçom me perguntou: O mate é da senhora?" - Fiquei me perguntando quando foi que começaram a me chamar de senhora. Depois, mais duro... Me perguntei quando é que foi que o tal "senhora" parou de arranhar os meus ouvidos. Poxa vida, senhora é uma palavra pesada. Fala só pra você ver. Quer dizer, ouvir. Não, sentir. Peso a gente não vê nem ouve, a gente sente, oras. SE-NHO-RA. Agora fala mastigando os sons: SÊ-NHIÓ-RÁ. Nhió é o mais pesado, o mais agressivo. Quando falo o nhió minha sobrancelha esquerda chega a levantar ameaçadora. Agora... Senhorita é tão delicado, tão leve, tão serelepe, tão suave, tão... jovem! Ai, esse dilema na minha cabeça já estava começando a ficar ficando chaaaaatuuuuuu e decidi resolver: Ih, quer saber? Senhora é uma norma social. Uma péssima norma social, mas é uma norma social. Começaram a me chamar de senhora porque tenho filho. Meu filho tem 9 anos, há quase dez devem me chamar de SÊ-NHIÓ-RÁ e por isso eu acostumei. - Acho que ficou claro que eu não falei isso pro garçom, era eu falando pra mim mesma, não ia dar essa bandeira toda.
Paguei a conta, fui a livraria. Livros são sempre uma deliciosa sobremesa. Devorei alguns. Peguei uns 15 livros na mão e assim que percebi o peso dos 15 nos braços, olhei pro meu filho, ele entendeu:
"É, mãmãe, daqui a pouco seu dinheiro acaba de tanto livro que a gente compra." É... meu filho é um poço de sensatez (não sei a quem puxou). Comecei a devolver tudo pras prateleiras. Resolvemos levar dois, um pra mim, outro pro sensato.
Me dirigi ao caixa e... "SÊ-NHIÓ-RÁ"! De novo!
(Sobrancelha esquerda levantada) Acho que hoje o "Senhora" voltou a arranhar.
É... os 30 estão chegando arranhando.
Mas o que pesa não são os números, são as palavras.
Trinta é uma palavra muito pesada! Não é não? Não?! Ah não?! É sim, tá?! Fala só pra você ver: TRIIIINNNN- TÁ!
TRINTA!!!! TRINTA!!!! TRINTA!!!! TRINTA!!!! TRINTA!!!! Tá vendo?!(em tom agudiço estridente, volume altíssimo descontrolado, intenção agressiva sem noçao).
(Recomposta) Mas eu estou absolutamente tranquila, pra mim ainda faltam 2. Anos.
e agora, neste exato instante, este conjunto de palavras que insensatas cumlminarão num ponto final, se multiplicam no espaço e no tempo ocupando telas tão diversas e tão únicas quanto a sua e aquelas. E agora, neste exato instante, elas palavras estão aqui, lá, aí, acolá onde todas estas direções se misturam e são ao mesmo tempo (ou não) a mesma (e não). E neste exato instante, eu estou me tornando você: neste exato instante em que você me lê. Neste exato instante, você está em mim e eu sou você.
O POMBO
O seu corpo repousava sobre a cama numa aparência inocente e de sono tranqüilo. O ponteiro anunciava dez horas e o sol encontrava espaço para iluminar levemente o céu esbranquiçado. A varanda nua sem cortinas... e os olhos se abriam, e apertados, se protegiam da luz que o dia irradiava fora da menina. Antes mesmo que qualquer movimento fosse desenhado pelo corpo, um pensamento lhe assaltou à consciência, que agora desperta, se via capaz de lembrar: Será que meu pai está melhor? - Tão logo se perguntou, decidiu que não deveria pensar naquilo: Ah, melhor não esquecer isso, vou me divertir hoje. - Aos nove anos, quem prefere pensar em fatalidades a pular corda? Meninos, talvez. Fazia sol, era uma segunda-feira, dia de escola e escolhas e, portanto, melhor seria afastar os maus pensamentos. Havia bons encontros e muitas brincadeiras que lhe esperavam ao longo das horas que ainda iam passar. Ela não queria trazer consigo o peso que quase se propôs ao abrir os olhos.
Decidida a ter um dia feliz, pulou da cama sem preguiça nenhuma. O sorriso já se instalara no rosto com satisfação e glória. Quando ia saindo pela porta do quarto, já extasiada, deparou-se com a mãe. Ela não sabe exatamente como, mas a entrada de caminhada lenta, espaçada e o humor ainda indecifrável da mãe a empurravam de volta para dentro. A avó entrava com passadas mais firmes, mas trazia consigo a doçura de sempre. Seus irmãos estavam sentados cada um em sua cama, recém despertos também, mas ainda um pouco sonolentos: "Mamãe precisa conversar com vocês." - A menina sentou-se na cama. A mãe de frente para ela e a avó ao seu lado. Havia peso naquele instante. O peso do qual fugira no seu primeiro segundo de consciência do dia. Ela temia o que estava por vir mas como por um instinto de auto-preservação fazia expirar qualquer negativa de seu pensamento: "Não é nada, não é nada. Ela não dirá nada de mau.". Tentava, não fazia.
" Papai do céu levou o pai de vocês." - Um impulso vindo do estômago se espalhou pelas pernas da menina fazendo-a pedalar numa corrida que não sabia para onde. Mas ela não se importava mesmo com o para onde, corria sem pensar. Queria, na verdade, fugir daquele instante, sair daquele peso imenso, emergir daquele inferno, como se não estando ali a dor não a pudesse alcançar. Como se fora daquele ambiente, a realidade pudesse mudar. Ela não sabia para onde, mas corria. Aquele corredor da casa decerto a levaria a algum lugar longe dali. Era nisto em que, sem pensar, confiava a menina. Por trás, um braço forte enlaçou sua barriga segurando-a com a firmeza e a exatidão de que precisava. O cólo robusto da avó lhe acolhia o choro engasgado. No acalento daqueles braços que faziam repousar sua cabeça no peito largo, foi novamente trazida para dentro do quarto. Ali, exceto seu pequeno irmão de quatro anos, todos choravam ao ouvir as explicações da mãe: Foi melhor para ele. O médico disse que se o papai vivesse, teria ficado inválido. -" O que é inválido?" - quis saber a menina. - "Invalido é quando a pessoa não pode fazer nada sozinha. Andar, trabalhar, escrever, nem comer sozinho o seu pai poderia." Ela não queria saber disso, a menina. Porque nem doente o seu pai deveria ter ficado. Afinal, todos os pais tinham saúde, andavam, trabalhavam, faziam tudo. Por que aquilo fora acontecer somente e justo com o seu pai? Mas ela não disse nada. Guardou pra si seus pensamentos pois saberia de todas as respostas que os adultos despejariam para conforto próprio. Além do que, todos já entendiam que a hora do papai havia chegado pontualmente para levá-lo. - "Uma noiva caminhando rumo ao altar de braços dados com o o vazio não pode estar sorrindo. E agora? Quem vai me levar para o altar? Terei vestido branco, um véu rastejando infindo sobre o chão, buquê de copos de leite, grinalda de princesa, a música que eu ainda não escolhi... terei um marido a minha espera, mas... quem me entregará a ele? Quem poderá dizer para cuidar de mim em seu lugar? A princesa bailarina não serei mais, ou quem irá chamar-me assim? Os cafunés das tardes de domingo, as histórias deitadas na cama, as rosas ao final das apresentações de balé no fim do ano... uma menina sem isso é uma noiva sem par antes do altar." - Isso tudo acontecendo dentro de sua jovem cabeça até a avó atentar para o pombo que acabara de pousar na varanda: "Que engraçado, ele está ali tão próximo do vidro e não pára de olhar pra cá." Ela entendeu. Olhou para o pombo e percebeu a magia que a avó propunha para transformar o instante. Escolheu então acreditar que naquele pombo que observava atento ao luto de sua família havia um pouco de seu pai. Numa tentativa de comprovar para si sua decisão mística sobre o olhar daquele momento, cutucou o vidro. O pombo não se moveu. Bateu um pouco mais forte, com a ponta dos dedos. O pombo permaneceu imóvel. Espalmou até fazer barulho e finalmente a ave atenta resolveu mirar outro canto. Mas com muita elegância e sem o susto característico da maioria. Virou-se lentamente, deu leves passadas na direção contrária a da menina e voou. Despediu-se a menina ao vê-lo partir.
elA
Até que a morte nos separe? Melhor retirar da lista de presentes todos os ítens com objetos cortantes. E nada de faqueiros para os noivos.
Sempre que algum amigo vem com a notícia de que vai se casar, estampa-se no rosto do ouvinte um sorriso amarelo tentando esconder aquela pergunta que pisca como alerta vermelho e faz som de sirene em sua cabeça: Até quando vai durar a tragédia? - Abraçamos o sujeito, fazemos votos sinceros de felicidade, mas... difícil acreditar neles.
O sonho do véu, grinalda, escovas de dentes em par estão tão vivos ao fim da primeira década do século vinte e um quanto em qualquer viagem que possamos fazer para trás. Não há mulher que não corra na hora do buquê. As que não correm, não o fazem por pura vergonha de sairem de mão vazias. Todas desejam casar, das mais rapazes as mais catitas. E os homens? Estes também continuam com seus anseios de propagação da espécie e porque não dizer, com seu potencial provedor da felicidade e segurança de uma moça e talvez também do seu futuro rebento. Aliás, constituir família é ainda um sonho no âmbito quase imaginário do indivíduo do nosso século. Indivíduo este que vive numa sociedade quase esquizofrênica por seu caráter oscilante. É claro que qualquer período é transitório, mas hoje nada pode mais se encaixar em modelos, mas se ainda se encaixam, que modelos são esses? Casamentos gays, casais a três, filhos de dois pais com duas mães e madrasta a tira colo ou, quem sabe, um casamento daqueles mais tradicionais mesmo, constituído de um indivíduo do sexo masculino, outro do feminino e um filho que ainda não se sabe de que gênero vai nascer ou... escolher.
Independente da forma que tomará esse matrimônio ou família, é uma relação verdadeiramente artesanal essa de se viver junto.
Quando começa o enredo é bacana brincar de ser meu, o meu eu ser seu, dois virarem um, querer parar o tempo e se sentir numa daquelas comédias românticas campeãs de bilheteria. Música tema para o casal! Se não houver, no problem, eles compõem. Ela a letra e ele a música. O dia inteiro juntos, a semana toda grudados, um mês inseparáveis, juras inifinitas de amor eterno, olho no olho, você é mais do que eu poderia imaginar, corpo no corpo, você é minha pra sempre, alma na alma, quero ter um filho seu, seu travesseiro já se misturou com meu e: Casa comigo? Quem pediu nem quer saber se está fazendo a coisa certa e quem ouviu leva um susto mas sabe que é tudo o que quer. Não há o que pensar. Aliás, pensar pra quê se o negócio mesmo é sentir? Sentir que ele é o homem da minha vida, que ela tem que ser a mãe dos meus filhos, que eu gosto do jeito que ela faz um nó com o cabelo e deixa discreta um mecha cair, que ele me acorda com um beijo no meio da noite e de manhã me leva café na cama, a segurança que ele tem de si, o seu jeito descompromissado com a vida, o desgosto pela rotina, o jeito questionador do sistema... seu jeito tão particular de ser. E ela... tão intensa, tão viva, tão curiosa, seu jeito impulsivo de viver como se estivesse desbravando um lugar desconhecido. E está.
Eles se amam, se admiram, se completam, se querem muito, se tem muito e estão decididos a ter bisnetos juntos.
No altar os dois respondem sim e nenhuma alma infeliz ou abençoada aparece com alguma objeção quando padre dá a oportunidade. As mães choram, as irmãs, as amigas, primas sobrinhas, e alguns corações machos mais sensibilizados podem chorar também. Na festa, todo mundo ri, todo mundo bebe, todo mundo dança YMCA. No dia seguinte todo mundo acorda de ressaca e os dois pombinhos partem para a lua de mel.E que de mel seja feita até a volta para o mundo real.
O mundo real... este compreende contas a serem pagas no fim do mês, silêncios largos nos domingos chuvosos, você não conversa comigo, você fala demais, você trabalha demais, você de menos, você larga a toalha molhada em cima da cama, você não fecha o tubo da pasta de dente, você sempre deixa a louça na pia, você sempre quer que eu lave na hora que você decide, você sempre sai em cima da hora, você que tem mania de fazer tudo com um século de antecedência! "Você isso, você aquilo" poderia dar nome ao festival de acusações que faz parte da norma de cobrança dos casais. E por que não avisam que esse negócio de convivência dá um trabalho e tanto? E que a dose diária de autoconfiança do sujeito se tranformaria em prepotência na boca dela e o o descompormisso poético da bela moça se transformaria em irresponsbilidade ao olhar dele?
Parece mesmo estranho, mas temos uma tendência cega de nos misturamos de tal forma que depois de um tempo queremos que aquele admirável mundo novo pelo qual nos apaixonamos se adeque as leis do nosso e assim toda aquela poesia vai se perdendo sem que percebamos. E quando nos damos conta nem sabemos como foi que aconteceu.
É trabalhoso sim e mais que amor é preciso também pra se manter essa convenção casamentícia que os tempos remotos alimentaram nos nossos ideais. Parece tão óbvio falado assim, mas poucos conseguem mais que amar realmente. E tem ainda aquelas palavrinhas que são repetidas sempre: respeito, paciência, compreensão etc. Mas pra que tudo isso aconteça mesmo... uma boa dose de inteligência emocional é necessária e autoconsciência também, porque é difícil a beça não esquecer que o corpo de casal que surge é apenas um de três naquela casa. Ele ainda existe como indivíduo e ela também. E se ele gosta de chegar cedo aos lugares, que saia antes e ela o encontre depois, como faziam no início de tudo isso. Quem foi que inventou esse negócio de que casal tem que andar grudado sempre? Assim, talvez a vida a dois seja realmente vivida a dois, ao invés de forçarem a barra para viver a um. E então, é bem possível que as coisas caminhem mais adiante.
E se não por acaso uma parada venha a ser obrigatória, que sirva como experiência para a vida inteira.
Mas se rebobinasse...
Tardiamente ela percebeu que aquele sujeito a amara da maneira mais nobre que um homem pode amar uma mulher... ah, que o tempo passa, a névoa se dissipa e ele já foi embora, tal qual chaplin, rumo ao infinito e sem olhar pra trás.
... ao apertar play, aconteceria tudo igual.
elA
VÔO
Ela está sofrendo de transtorno de estresse pós traumático devido a vôo rasante da giganteca barata que invadiu sorrateiramente seu quarto e veio passar barulhenta, com seu bater frisante de asas, rente a sua orelha. Com o leve susto, o Lap top que estava no colo voou três metros mais alto que a barata e foi para no chão. Quase morreram um roteiro, um lap top e uma alessandra. Baratinha filha da puta!
elA
Sobre a senhora que trabalha na casa dela
Ela está escutando a Tereza dizer que a cunhada da irmã dela disse que a doença da irmã era pq botaro macumba nela. A irmã dela creditô, piorô. E os pastô falaro que ela não tinha que tê misturado as coisa de deus com aqueles negóço lá.
elA
Sobre a mesma senhora
Ela não dormiu em casa essa noite. Chegou às 14 horas. Thereza, a moça que trabalha lá - e também ótima confidente - olha de soslaio, sorri e diz sugestiva:
- Nossa, tá diferente hoje...
- Diferente como, Tereza?
- Diferente... mais bonita, assim, né, com um outro astral... sei lá, parece que fez alguma coisa assim... de diferente essa noite.
- Que coisa diferente, Tereza?
- Não sei, assim... um namorooooooro! – com sorriso desconfiado
- Tereza, se eu disser que eu passei a noite com duas mulheres batendo papo e dando risada, você vai acreditar em mim?
- Tá bom...
Ela continuou desconfiada, acredita?
Encontrar com boas e velhas amigas... não tem preço! Um brinde a Fernanda Azevedo e Maria Joana Chiappetta!
elA
A MINHA SORTE VALE R$1,00
Desempregada, solteira, sem dinheiro, há uma semana praticamente confinada em casa... e ainda por cima... de TPM! Puta-que-pariu!
A verdade é que, naquele sábado, era pra mim que o dia não ia muito bem... Nada bem. Acordei por volta de 14h30 com a sensação de serem 6h da matina. O corpo pesado e o humor dos dragões... um bafo de onça e o pobre do meu filho aqui, aturando a mãe. Minha mãe e meu irmão estavam saindo para um bloco animadíssimo, destes que tem aos montes no carnaval... Mas pra mim, são mais sinal de causadores insuportáveis de trânsito do que motivo de alegria, na verdade. Especialmente em dias de tpm, como aquele sábado.
Um amigo havia dito que reservaria um convite para eu assistir seu espetáculo "Cachorro", já que estou tão dura que nem as cinco pratas eu estava podendo... Como eu teria que pedir ao meu ex-marido para buscar o meu filho mais a noite, meu corpo era uma granada e o pavio não existia... deduzi que na real, a medida mais cuidadosa era ligar imediatamente para o pai do meu anjinho e pedir que ele o retirasse rapidamente da zona de risco – eu estava a ponto de explodir. Assim foi feito. Após dar o almoço e o banho, permiti ao pequeno mais alguns instantes de entretenimento no computador – ele é todo metido a tecnológico e adora os jogos do cartoon network, disney, jetix e discovery kids. O interfone tocou e então, meu filho estava a salvo.
Algumas tentativas frustradas de contato com o meu amigo para lembrá-lo sobre o convite não me fizeram desitir de finalmente sair de casa. Liguei para Santa vovó Yvonee pedi R$5,00 como ajuda de custos para que eu pudesse me locomover até a Gávea e depois voltar para casa (a passagem de ônibus custa R$2, 10). Minha Santa avó atendeu ao pedido de socorro e com uma nota de R$5,00 libertou a neta de seu confinamento. Após alguns instantes de papo entre as duas, o relógio marcava dezenove horas e cinco minutos alaranjados. É que estes celulares da moda tem display metido a moderninho, cool. Despedi-me de minha Santa vovó Yvone - imaginei que seria adequado sair com aquela antecedência, pois embora fosse apenas atravessar o túnel, seria bom chegar um pouco antes do horário para verificar o lance do convite. A peça estava marcada para começar às 20h.
Segui até o ponto de ônibus e julguei mais prudente pegar a van que ia para Gávea pelo túnel do que o ônibus 178, com mesmo destino, mas cujo trajeto incluia uma volta a mais - e havia um certo engarrafamento nesta volta a mais. Entrando na van, encontrei uma velha amiga, Marcela Leite – alguém com quem não tenho contato freqüente, mas muito carinho. Ela me chamou com empolgação. Comprimentamo-nos alegremente e sentei ao seu lado. Como está sua irmã e como vai seu pai, o que sua mãe anda fazendo da vida e seu irmão já deve está enorme, como vai o novo emprego e quando me dei conta, a van estava indo não pelo túnel, como de costume, mas pela Avenida Niemeyer - e um trânsito ferrenho me fazia suspeitar que eu chegaria estourando o limite do relógio. Enfim, procurei aproveitar aquele encontro inesperado. Conversamos um pouco , eu e Marcela , e quando eu estav no auge do último episódio trágico da minha relação teoricamente amorosa, toca o telefone de Marcela - Imagina só? Era o auge! É claro que eu estava no grau máximo de euforia, gesticulando feito uma louca, fazendo caras e bocas, defendendo veementemente minha razão integral na história, envolvidíssima com o presente momento revivendo o instante passado. - Ela falou por algum tempo e desligou. Retomei do ponto onde havia parado, mais calma serena e podenrada, é claro. Ela estava interessadíssima, afinal minha histórias são sempre profundas, densas, gregas, e muito dialogava com minhas questões durante a conversa. O telefone tocou de novo. - Eu sorri, tentando demontrar a simpatia de uma pessoa compreensiva, serena, controlada, afinal de contas era seu pai. Família, né? A gente tem que ter respeito pela família dos outros. Eu não ia gostar se fizessem cara feia pra minha mãe mesmo que ela estivesse do outro lado do telefone. Mas aquela ligação já estava durando cerca de dez minutos e quando um pai passa mais de cinco minutos numa ligação... Pode ter certeza, o esporro tá comedo! - Ainda bem que eu não tenho pai - Dito e feito, Marcela desligou e disse: " É que eu perdi a bolsa da faculdade e meu..." TRIIIIIIIIIIIIIMMMMM "Alô, oi pai..."
Aí foi até quase o fim da Avenida Niemeyer naquele blá blá blá, mais do lado de lá do que do lado de cá, porque a voz da Marcela mesmo, eu ouvi poucas vezes. No total, ela deve ter passado cerca de vinte minutos só nesta ligação. Marcela finalmente desligou. Ai eu quase gozei, já estava virando uma necessidade vital terminar aquela história, até porque, vinte minutos entubando pra poder contar. Empolgadíssima, eu abri a boca e ia emitir o primeiro som quando a Marcela disse: Ai, rapidinho, amiga, agora tenho que ligar para o Pedro – o novo caso com quem ela estava indo encontrar no Leblon – "Oi Pedro, foi mal, é que eu estava no telefone com meu pai e tal... tá, pode ir saindo de casa, peraí... Moço, vou saltar aqui, na esquina daAtaulfo! Oi Pedro, então tá bom, daqui a pouco a gente se vê. Beijo." – Eu ainda estava com a boca aberta, paralisada na mesma posição. Queria poupar o tempo de abrir aboca pelo menos e aproveitar o último minutinho que restava pra contar meu drama. Mas ali estava a esquina da Ataulfo. Marcela lamentou por não termos conversado mais, nos despedimos com dois beijinhos e ela desceu.
Eram 20h05 e a peça já havia começado. Pensei que se eu corresse, de repente chegava a tempo de entrar.A van me deixou na Bartolomeu Mitre, próximo ao Hospital Miguel Couto. Corri, corri, corri, corri, corri até o Planetário. É verdade que parei algumas vezes. Uma puta dor no peito, fumante é foda! Com bronquite ainda por cima... Melhor nem comentar. Chegando no Planetário logo avistei a Luciana Martoni. Ela estava na porta com toda pinta de produtora. Ela e mais uns dois funcionários do teatro. A janela da bilheteria estava fechada por uma madeira idêntica ao resto da parede do lugar.
"Oi, Luciana, a peça já começou, né..." Ela começou a me responder: "É, e você sabe como é o teatro aqui, né, depois que fecha..." Minha vontade naquele momento foi de sentar exatamente ali onde eu estava e chorar...mas chorar muito, muito mesmo! Choro de mulher desempregada, solteira,com uma fortuna de R$3,00 no bolso, enfurnada há uma semana dentro de casa, sem qualquer mililitro de alcóol no sangue, recém saída de um trânsito ferrenho, com TPM filha-da-mãe e barrada na porta do teatro depois de correr a Maratona dos Fumantes Fudidos. Ainda assim, eu resperei fundo - não tão fundo senão o choro podia vazar - e tentei, juro que tentei, simpaticamente falar sobre o horror que estava o trânsito, culpando estes blocos animadíssimos de carnaval pelo meu atraso. Prometi voltar no dia seguinte e com antecedência. A minha sorte é que o dia seguinte era aquele último domigo do mês, quando os teatros da prefeitura do Rio vendem seus ingressos a R$1,00.
Qual a duração deste agora?
elA
DAS PAIXÕES
Estou cansada das paixoes torridas que cansam os pulmoes. Aquelas paixoes que me fazem respirar ofegante. Aquelas paixoes avassaladoras que nao nos deixam comer ou nos fazem comer demais, que nao nos deixam dormir ou nos fazem dormir demais, aquelas paixoes que nos fazem parar de pensar ou nos fazem pensar demais, penar demais, amar demais, querer demais aquele unico objeto de paixao.
elA
Estou cansada dessas paixoes insaciaveis que nos desgastam por completo, que nos partem e nos repartem inumeras vezes em cacos diversos e infimos. Paixoes indiscretas. Cacos infimos. Eu nao quero ser aquela que vai te amar incondicionalmente e olhar nos seus olhos transbordante de desejo a espera de mutua troca e entrega. Estou cansada dessas paixoes que esperam ansiosas pelo telefonema alheio meio a tantas outras coisas que nos querem por la. Estou cansada dessas paixoes encantadoras que nos fazem esquecer quanto o sol tambem esquenta, que o mar nao para e o tempo tambem nao, que as amizades oferecem diversidade e troca, que os filmes convidam a um universo intimo, que o chopp desce gelado, que os compromissos marcados podem ser tao incriveis quanto a companhia da sua doce e perigosa paixao.
Estou cansada dessas paixoes sublimes que encontram e voce um fiel prisioneiro. Depentente. Estou cansada dessas paixoes egosistas que querm tudo pra si e nao nos permitem o entorno, essas paixoes que me embriagam e nublam os olhos a mente e o corpo. Essas paixoes antropofagicas.
Suas paixoes ridiculas.
Estou cansada delas.
elA
EU E ELA SOMOS NÓS
Ela não precisa de espaço nem tempo, dentro e fora, nem motivo ou causa, nem ponteiro parado, televisão sem som, som quebrado, multidão vazia, nem de gente cheia de tudo, nem de tudo nem de nada, nem de coisa alguma. Ela é coisa democrática, silenciosa, verborrágica - ela em qualquer forma. Ela na veia correndo por todo corpo, efeito instantâneo e latente. Só lhe dão se você deixar... e um espaço vazio, sem quinas, sem cor, sem gente, sem móveis. Só você e a agulha. Fina, pequena, indolor, prata, na veia, agulha, suave... Ela entra macia e faz aquele tátil pic. Só lhe dão se você deixa entrar. E você deixa. E entra, é denso e seria amargo se tivesse gosto... líquido entrando denso no corpo e o corpo olha pro teto que não há. E o teto é branco e o céu nublado e as espumas também e o azul do mar sem nuvens e o barulho chuá que vai e que vem molhado na areia gelada d'água que cobre e abandona as unhas vermelhas do esmalte risqué que começou a descascar no dedão do pé. E o gelado do coco na garganta que desce enquanto o opala 86 passa preto na rua e buzina antes de o sinal abrir. Os pés caminham sobre areia fofa antes de pisarem no chão de metal desenhado do ônibus da linha 177 que vai em direção a praça Mauá. A agulha sai num rompante do braço mas isso não é nada comparado ao lirismo daquelas montanhas cheias de curvas e árvores, montanhas com nome pão-de-açucar brilhando verdes parecendo veludo na luz que o Sol assina nesse espetáculo... altas belezas naturais logo ali atrás dos espelhos d'água, as águas vistas pela janela que anda ali no asfalto conriscos amarelos bem no aterro do Flamengo. E de repente tudo isso some! Não tão lírico era o gigantesco quase sufocante traseiro da mórbida obesa que sem licença acaba de levantar ao lado e cobrir toda a visão da cena. Ela se vai e a vista... ih! Moço! Abre aqui pra mim? O que se vê é o posto BR na Osvaldo Cruz. Escuro. Está escuro agora. Não estava quando os pés pisaram a areia fofa. Cadeira de madeira vazia sem porteiro atrás da mesa. Nossa, a parede da portaria do prédio é marfim? Não é branca? Jurava que era... E o piso? Que é isso? O piso é de mármore e de losangos e é preto e é branco e... um poste no canto direito? Um poste também de losango e também branco e também preto e alto e colonial e cafona no canto direito! Cafonérrimo! Um poste cafonérrimo no canto direito? 16 anos morando num prédio preto e branco cafonérrimo... Isso é constragedor. As plantas até que não incomodam embora não falem nem andem e pareçam mortas mesmo estando vivas. Ai que nojo!!!! Uma lagartixa branca passando com o rabo pela metade no losango. Será que o rabo da lagartixa ficou se mexendo quando ela o perdeu? De que cor será que ela vê o mundo? Será que ela vê vendo? De repente a lagartixa é cega.... Mas se é cega, pra que que tem olhos? O quê? 25º? O elevador está parado há 10 min no 25º? Ok... Ok... Tudo sob controle... É só a neurótica do 2504 fazendo obra pela 25ª vez. Aquela neurótica com a síndrome do nunca estou satisfeita com nada por isso muda o carro a cada seis meses, a cor do cabelo toda semana, a do esmalte a cada 5 minutos e o marido ela não tem porque antes de assinar os papéis ela resolve que deve mudar também. Escada. O terceiro andar não é tão longe assim, mesmo tendo o play e duas garagens antes. O problemas são essas duas garagens. Ih, a luz! Ficou acesa. Ai! Cadeira reclinável... como essa cadeira é macia. Cadeira grande marrom macia reclinável. Cadeira de preguiçoso. Frio. Merlot. Cadê as taças? Taças de vinho de vidro de cor branca de poeira de anos sem usar. Taças vazias. Taças cheias de nada dentro delas. Taças com o pano que esfrega esfrega esfrega. Transparentes as taças estavam depois do pano e antes do vinho que desce desce desce aos poucos saindo da boca verde de vidro da garrafa do Merlot que saiu da bolsa branca do supermercado coração vermelho cor de unhas descascadas. Computador ligado. Teclas brancas com letras pretas. Duas taças. Uma é minha. conversacomversoeumdedodeprosa.blogspot.com. Nova Postagem escrito em branco dentro de um quadrado laranja. "Ela" foi a primeira palavra antes que o resto das letras começassem a aparecer e... um gole. Duas taças. Uma é minha e a outra é sua. Um gole que desce desce desce e entra denso e seco e amargo desce e caminha por dentro do corpo de todo o corpo e a tela branca, tudo branco - as pareces o chão o teto, não há móveis, não há nada além. E você? No meio. Espaço vazio, sem quinas, sem cor, sem gente, sem móveis. Só você e a agulha. Fina, pequena, indolor, prata, na veia, agulha, suave... Ela entra macia e faz aquele tátil pic. Só lhe dão se você deixa entrar. E você deixa. E entra e é denso... líquido entrando denso no corpo e o corpo olha pro teto que não há. Duas taças entre mim a tela branca povoada por pretas letras que surgem escrevendo p-a-l-a-v-r-a-s dentro do pensamento. Duas taças, a minha é a vazia. Um brinde a nós duas e um gole. E eu te engulo e me embriago de você antes que pense em me engolir e eu fique bêbada pra te esquecer. Mais um brinde.
Estamos juntas e somos uma. Eueela. Só lhe dão se você deixar. E você deixa. E pede mais. Um gole. E o líquido desce vinho e amargo e seco e denso desce desce desce desce desce.
elA
AO ESPELHO
As vezes sinto tão forte a lacuna entre o que penso e o que digo que me sinto traída pelas minhas palavras faladas. Decerto há algo que desejo esconder. E escondo, é claro. Por isso o que falo sai tão incompleto. Confundo os outros e também a mim. Meu tom também não se faz sincero. Não do que penso, mas do que falo. Inadequada angústia que se instala entre o que se esconde em mim e o que me salta da boca. Ela me trava a mensagem, aquela que deveria emitir e que em alguém tão obviamente deveria chegar. Mas ao tentar concluir o que as idéias me disseram à mente, escondo as palavras do pensamento. Quem mente aqui sou eu. Deixo elas lá, as palavras do pensamento. Escondo também de mim a verdade que sobre o que me faz travar neste espaço em que dialogo entre eu e eu mesma, sobretudo porque devo agora acessar alguém. Este outro sentado à minha frente esperando que eu diga algo de pleno sentido com a profundidade de um abismo, clareza límpida, elegância sensível, algo simples e não simplório bem distrubuído num discurso humildemente bem elaborado e inevitavelmente persuasivo. Ah! Deve instigar quase tão delicadamente provocante quanto tesão de romance! Tudo isso tão sutilmente quanto a dança de uma pluma na brisa.
Não! Não sei nem ao menos escolher entre que digo e o que calo. E este outro, ansioso, espera pela nobreza do que direi.
Ah... se eu fosse mais esperta... logo saberia que não estava sentada de diante de um espelho. E que portanto, trata-se de alguém bem mais simples e tanto menos temeroso este a quem falar.elA