Arte, porque a vida por si só não deu conta dela mesma





TEXTOS TEÓRICOS




OS ACASOS SOMOS NÓS

sobre o texto Inspiração e Individualidade de Fayga Ostrower

em sua publicação ACASOS E CRIAÇÃO ARTÍSTICA





Artista plástica atuante em diversas áreas (gravura, pintura, desenho, ilustração, docente, teórica), Fayga Ostrower é uma figura importante no campo das artes e possui diversas publicações, dentre as quais destacaremos neste momento “Acasos e Criação Artística”. Neste livro, publicado em 1990, ela lançou a seguinte questão: Não existe criação artística sem acasos. Mas será que existem acasos na criação?
A autora inicia o primeiro capítulo de seu livro se perguntando se são apenas meras coincidências aqueles que nos parecem acasos significativos. Logo, ela se pergunta se, ao invés de estarmos fortuitamente atravessados por um acontecimento revelador, estamos, na realidade, percebendo algo que atende às necessidades da nossa própria subjetividade.
Fayga cita um fato de sua própria experiência criativa: Certa vez, ela estava recolhendo os materiais de trabalho – chapas para as gravuras, tintas e jornais que ela usara para cobrir o chão. Num lapso de instante em que se levantava, um feixe de luz que atravessou a janela fez cintilar uma mancha e aquilo lhe chamou a atenção. Ela jogou no lixo o jornal, mas a mancha reverberou de tal modo em sua memória que veio aparecer mais tarde em sua criação. E ela se perguntara porque nas outras dezenas de vezes que ela procedera da mesma forma, com os mesmos materiais, ela nunca havia reparado nas manchas ou as percebido com tamanha fascinação.
Após citar sua experiência, a artista plástica cita também um desses acasos ocorridos com um colega fotógrafo, que descobrira acidentalmente, a partir de um erro, um novo conceito para seu trabalho. Ele, sem saber, utilizou duas vezes o mesmo filme e, ao revelar, descobriu imagens justapostas aleatoriamente, mas que dialogaram perfeitamente culminando numa bela composição.
De acordo com a autora, cada artista terá seu próprio repertório de acasos, mas para se tornarem acasos, eles têm de ser percebidos por nós. E ela lembra: o que é a vida senão uma série de acasos consecutivos e desconexos? Afinal, somos bombardeaos a todo tempo de estímulos de toda ordem: temperatura, movimentos, sons, cheiros, cores, texturas – imagina se pudéssemos percebê-los, todos? Esses que percebemos podem se tornar acasos..
O fato aqui apontado, é que existe em nós uma seleção. E a importância que dedicamos a certos eventos fala de algo que já está acordado, ainda que de forma não consciente, na nossa subjetividade. A isto, Fayga chamará de acaso significativo e afirmará então que estes não são, de fato, programados, elaborados ou previstos - mas sim, já eram de alguma forma esperados: “as pessoas estão é receptivas; receptivas a partir de algo que já existe nelas em forma potencial e encontra no acaso como que uma oportunidade concreta de se manifestar. Por mais surpreendentes que sejam os acasos, eles nunca surgem de modo arbitrário…”
A cada indivíduo um manancial de necessidades, de desejos, memórias, potencialidades intelectuais e sensíveis. Em cada indivíduo um estado de espírito, um aqui, um agora, uma paisagem invisível. E Fayga diz, ainda, que apenas com a maturidade é possível reconhecer-se em seu potencial criador. E que a criação da identidade se dá no ato da assimilação desses acasos significativos e no entendimento de sua importância. São as escolhas que constróem caminho.
De acordo com a perspectiva de Fayga sobre os acasos, poderíamos dizer que os acasos nos revelam mais sobre nós do que sobre eles mesmos. E, segundo a autora, isto é também um dado de maturidade, uma vez que no universo infantil a percepção se dá a partir de um todo não diferenciado, sem qualificação na unidades que, interligadas, compõem.
Ela volta a afirmar que a fonte da criatividade artística é o próprio viver e que os acasos podem ser caracterizados, portanto, como momentos de elevada intensidade existencial. E para dinamizar sua reflexão acerca do tema, a autora recorre a comentários de diversos artistas, dentre os quais destaco o trecho de Pablo Picasso selecionado pela autora: “O importante na arte não é buscar, é poder encontrar”
Adiante, o capítulo investiga a inspiração sob o ponto de vista da psicanálise e se defronta com o olhar freudiano que aponta nos processos criativos questões relativas a infância, traumas e aspectos de campos recônditos das mente. Recorrendo principalmente a Ernest Kris, Fayga afirma que, no enfoque psicanalítico, a inspiração ainda é caracterizada como um processo de passividade, uma vez que o indivíduo está sujeito as manifestações inconscientes e rendido aos processos psíquicos desencadeados na infância. Fayga, todavia, discorda das teorias psicanalíticas e coloca ainda que estas interpretações estão sempre em busca de diagnóstico e ignoram estilo e os conteúdos expressivos da imagem, qualificando-as como meras ilustrações. O maior problema aqui apresentado pela autora é que não existe arte sem estilo. E o estilo é algo que caracteriza a escolha de linguagem, característica da fase adulta. Ela não duvida da influência dos desejos, traumas, culpas e recalques em geral do inconsciente nos processos criativos, mas não o definem. Afinal, como antes já estava dito, ela acredita que o trabalho artístico acontece a partir de toda a experiência de vida do criador. E só com processo de adultificação um indivíduo se torna capaz de discernir, elaborar, aplicar as ferramentas adquiridas apontando para um fim - a criação é uma conquista da maturidade.
Com base nisto, Fayga cita a mudança estilística de Monet do Impressionismo para o Expressionismo. E diz que apenas as novas realidades internas do artistas tornaram esta tranformação possível.
Ainda sobre o olhar psicanálítico para a inspiração e os processos criativos, a artistica plástica sugere que faltam ferramentas analíticas que possam interpretar os discursos não-verbais, e por isto esta lacuna entre artes plásticas e psicanálise.
Assim, Fayga Ostrower admite que a criação compreende em seu ato a totalidade do indivíduo considerando os planos do inconsciente tão indispensáveis quanto o consciente. E lembra que mesmo as expectativas inconscientes, quando se depararm com os encontros ao acaso, são sacudidas e desencadeiam intensos processos psíquicos. Isto é, o estado de disponibilidade receptiva é ativo e não passivo como defendido pelo psicanalista Kris.
Estamos escolhendo a todo tempo. E a percepção faz também parte disso. Mas já que a maturidade e os processos de adultificação nos permitem maior potencial de construção, que nível de escolha temos quanto a nossa própria receptividade? Quanto podemos alterar nossos padrões perceptivos? Isto não constrói, também, estilo?


Alessandra Gelio





SOBRE OS PONTOS DE VISTA CÊNICOS DE ANNE BOGART

Os viewpoints são uma técnica de improvisação cujos atores envolvidos agem sobre pontos físicos determinados como referência para criação no exercício cênico. Criada na dança pela coreógrafa Mary Olivie, esta técnica foi adaptada para o teatro por Anne Bogart.
Os viewpoints se dividem em espaço, tempo e som e cada um desses pontos se subdividem desmembrando-se em andamento, duração, repetição, reposta kinestética, gesto, arquitetura, relação espacial, forma, topografia, volume do som, aceleração do som, frêquência do som, timbre e silêncio são os pontos de referência utlizados para o desenvolvimento do trabalho com VP e a partir deles é que se constrói um diálogo com o que há de concreto na cena. A resposta kinestética ou estímulo-resposta é um ponto fundamental para o trabalho. Para que ela se aplique de fato na vivência cênica do ator, ele deve se permitir um estado de disponibilidade psico-física que o possibilite responder a qualquer estímulo, desponjando-se das idéias previamente construídas. O exercício aqui é não saber o que acontecerá no momento seginte. É uma resposta imediata aos eventos do ambiente circundante. Algo acontece e o ator responde (ou não, desde que sua não-resposta seja, então, uma escolha) com seu corpo através da ferramentas estruturais dos VPs. Com o treinamento continuado sobre os viewpoints, o ator e o grupo de trabalho cria vocabulário para construir e desconstruir, compor e transformar o espaço cênico.
É importante frisar que o trabalho com os viewpoints acontece calcado sobretudo na construção coletiva. O ator como um elemento de composição dentro do espaço, em pleno diálogo, entendendo que tudo o que ele sabe sobre o que pode acontecer no instante seguinte é que aquilo fará parte de um universo infinito de possibilidades.


Alessandra Gelio





TEKNÉ: OS PROCESSOS DO FAZER ARTÍSTICO NO DESIGN E DA MODA

Resenha crítica sobre o artigo de Deborah Chagas Christo
"Designer de Moda ou Estilista?
Pequena reflexão sobre a relação entre noções e valores do campo da arte, do design e da moda"

Deborah Chagas Christo, desginer gráfico e professora, é graduada em desenho industrial pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro e Mestre e Doutora pela Pontifícia Universidade Católica também do Rio. Possui diversas publicações em simpósios e congressos, dentre elas o texto em questão: “Desiner de Moda ou Estilista? Pequena Reflexão sobre a relação entre noções e valores do campo da arte, do design e da moda”, do ano de 2006.
Com a ressalva de que a obra de Deborah Chagas Christo é a primeira publicação sobre a temática no Brasil, “Designer de Moda ou Estilista” analisa as propriedades do fazer artístico nos campos do design e da moda e suas relações, períodos de ascensão e expansão nos aspectos criativos e mercadológicos.
A autora inicia seu texto apresentando a vigente aproximação entre o design e a moda passando primeiramente pela questão conceitual, logo em seguida pelo campo acadêmico até chegar ao setor mercadológico, quando cita a expressão característica do setor da moda “Lançamentos de Verão 2007” usada para anunciar a, na época, nova linha de produtos no site do Coza.
Ela explica que historicamente existe uma separatividade entre o design de produto e a moda, uma vez que os objetos de indumentária não se classificavam necessariamente como produtos, já que s moda trazia consigo um cunho conceitual no desenvolvimento de coleções sempre baseadas em tendências, por exemplo.
Esta distinção acaba se dando principalmente pela característica funcional no produto do designer, oriunda da tradição modernista do desenho industrial no Brasil, já que a primeira escola superior de desenho do país, ESDI, se baseou no modelo funcionalista da Bauhaus. Os valores, então, eram calcados sobretudo na eficiência, ordem e simplicidade, isto é, no sentido prático ao qual estava destinado o uso do produto. Desta maneira, o caráter artístico, criativo e autoral do desenvolvimento do produto não era valorado.
Débora aponta a crise econômica de 1929 nos Estados Unidos como um grande marco para o crescimento e transformação desta perspectiva no campo do design. A necessidade de incentivar o consumo resultou na idéia do diferencial – a re-paginação dos produtos afim de torná-los mais atrativos - um estímulo que atua no desejo do público consumidor. Daí a valoração do senso estético no desenvolvimento de produtos: a aparência como estratégia de venda.
Para retornar a abordagem do paralelo entre o design e a moda, a autora coloca em questão a tradução do termo design para desenho industrial, apontando para as discussões, as noções de sentido que isso pode suscitar. A partir daí, ela traça uma relação direta com os termos designer de moda e estilista como possíveis traduções para fashion designer abordando que os dois termos deveriam vir imbuídos de mesma significação. Entretanto, um termo parece se aproximar mais do campo do design e o outro da moda. Como se um estivesse mais associado as questões objetivas da criação e o outro aos conteúdos estéticos.
Para explicar a relação entre designer de moda e estilista, Deborah reflete sobre o percurso social do artista desde o século XV, onde podemos observar a Revolução Industrial como ponto-chave dessa dissociação. Foi aí o período em que a diversificação de público consumidor e produtos com valor mercantil transformou a obra de arte em mercadoria. De acordo com a nova perspectiva que vinha se formando no ramo arte-mercadorias, muitos artistas buscaram uma distinção cultural, defendendo a originalidade, discurso e simbologia de suas obras e resistindo a idéia de reduzi-las a produtos.
É com esta distinção que se começa a atribuir ao design suas propriedades técnicas, estruturais e funcionais no processo de criação de produtos. E como mercadoria, neste processo estão envolvidos: os conhecimentos sobre os custos, materiais, formas de produção, comportamentos do consumidor, gestão de projetos etc.
O fato é que voltando a um período anterior, a Idade Média, Deborah encontra um cenário em que o artesão era também o artista e portanto o projeto e o produto, a arte e a mercadoria, não eram ainda separadas em escalas.
Para pensar a bifurcação destes aspectos da produção do design, a autora recorre Rafael Cardoso, que aborda esta dialética apontando para definições que podem se basear tanto no objeto quanto no processo. Cardoso entende uma criação transversal, em que processo e produto devem estar permeados por propriedades objetivas e subjetivas, bem como as necessidades dos usuários.
Isto é, um processo criativo que compreenda tanto os níveis técnicos da construção quanto a esfera sensível e estética do desenvolvimento. E desta mesma maneira, o estilista deve se imbuir das práticas de desenvolvimento de conceito da obra e das fases práticas da criação.
Para sintetizar a reflexão provocada neste passeio histórico sobre o fazer artístico nos campos da moda e do design, podemos retornar a um tempo ainda mais remoto, e lembraremos que o termo Teknè, do grego, por definição, significa arte ou técnica.

Alessandra Gelio