Arte, porque a vida por si só não deu conta dela mesma





domingo, 12 de dezembro de 2010

UM ESPAÇO CÊNICO QUE NÃO É MAIS UMA COISA SÓ

“E agora nada é mais uma coisa só” foi um espetáculo realizado em 2005 na Caixa Cultural pela Comapanhia de Teatro Autônomo.

Dirigida por Jefferson Miranda, a peça é a continuidade de uma pesquisa de cena já presente no trabalho anterior, o bem sucedido “deve haver algum sentido em mim que basta”.

A companhia parte do princípio de que não existem preceitos em direção a uma linguagem particular na sua investigação cênica. Apenas uma balisa: o que nunca foi realizado em teatro? Definem seu teatro como um teatro de fronteiras. Onde elas estão? Como romper com elas?

Num tempo em que integramos uma sociedade líquida, como define Zygmunt Bauman, esta sociedade pouco consolidada, fluida como água, tão mutável, neste corpo social onde as variações acontecem a todo instante, nada se fixa e tudo se transforma num agora após o outro. Neste contexto, as possibilidades se alargaram na infinitude e não param de emergir. E para Jefferson Miranda e sua companhia, é tempo de fazer estas possibilidades emergirem aos palcos. Se o intuito é retratar a exata situação da interrelação humana, se existe algo de sociológico nesta proposta, não sei. Creio que não. No entanto, acaba por refletir bem contemporâneamente, de forma simples e sofisticada ao mesmo tempo, o nosso meio.

“E agora nada é mais uma coisa só” não apenas retrata, mas carrega no título esse caráter fragmentado do mundo e, claro, do indivíduo do século XXI.

Não. De fato, nada é mais uma coisa só. As coisas acontecem simultâneas, não estanques e nem segmentadas. É assim, justamente como nosso corpo social se configura, que se dá a cena do espetáculo de Jefferons Miranda. Situações cotidianas diversas ocuparam uma sala no segundo andar da Caixa Cultural. Nesta sala, uma instalação: a cenografia reproduzia espaços internos, lembrando apartamentos. Pilastras, mesas, sofás, pufs, cadeiras, recortavam os espaço. E reafirmando esta fragmentação, recortes de instantes vividos entre duas duplas de atores, por vezes aconteciam simultâneamente, evidenciando deslocamentos no espaço-tempo e determinando ainda mais a não linearidade dramática. Linearidade, aliás, é palavra que não cabia naquele espaço. Circunstâncias diversas, possibilidades várias de interrelação humana, se manifestavam demonstrando, em um canto ou outro do espaço, seu caráter múltiplo. E o mais interessante de tudo isto é a condição em que se põe obrigatoriamente o espectador. Obrigatoriamente livre para escolher. Com esta simultaneidade toda, ele é colocado em posição autônoma, isto é, ele pode selecionar o que vai assistir. E aí reside a grande particularidade deste espaço cênico: o espectador está totalmente inserido nele. Nada separa a área de atuação da platéia. Aliás, o espectador pode e deve transitar naquele espaço, percorrendo a cena que quer ver. E se mudar de idéia, não há problema. Bem possivelmente haverá uma outra cena acontecendo logo ali.

Esta enecenação, caracterizada pela apresentação de situações corriqueiras vividas sobretudo entre casais numa relação de hiper proximidade com o público, traz outro traço marcado já em “deve haver algum sentido em mim que basta”: a interpretaçao transparente chamada por alguns de hiper realismo. Contudo, essa vivência cênica proposta por Miranda, se dá entre o despojado e o poético. É que o espactador está ali, inserido naquela espécie de apartamento como se tivesse sido convidado a invadir a intimidade de alguém. Não há espaço para uma teatralidade exposta. Nem para personagens construídos ou gestos expressivos. Ali temos pessoas que foram flagradas no seu universo particular. É isto que o espaço determina. E por isso também elas agem desta maneira.

Todavia, não podemos esquecer, estamos num evento cênico, como prefere chamar o diretor do trabalho. E qual a diferença de entrar de fato na intimidade do lar de outrem ou assistir uma cena que simula tal acontecimento? Aí está a sofisticação do espetáculo. Ornamentando, ou melhor dizendo, compondo a engrenagem desta cena, o cenário, apesar de trazer diversos elementos que caracterizam um apartamento, não é disposto de forma naturalista nem cotidiana. Num canto temos muitas e muitas cadeiras empilhadas desordenadamente, enquanto num espaço central uma mesa está toda ocupada por uma bela quantidade de objetos domésticos organizados com uma preocupação estética. Três ou quatro ventiladores antigos, por exemplo, fazem parte desta composição.

Na Cia do Teatro Autônomo, a tecitura do espetáculo está sempre passando pela autoralidade diretor artístico. Não obstante, esta característica poética costuma se apresentar no trabalho da companhia. É que Jefferson atua também no campo das artes plásticas, bem como, já trabalhou com figuinos. Em geral, inclusive, é ele quem cria os figurinos dos espetáculos que dirige. Neste trabalho, Jefferson assina roteiro e direção, além de cenografia e figurinos ao lado de Flavio Graff.

Em “e agora nada é mais uma coisa só” os figurinos são em sua maioria sóbrios e densos, tons terra: marrom, vinho, verde musgo, beje e cinza. A não ser na cena realizada pela jovem atriz Julia Lund, cujo figurino é composto por um tchutchu preto de bailarina e o cabelo com um penteado “maria chiquinha”, que dialoga perfeitamente com a jovialidade, uma espontaneidade quase infantil, característica da cena.

A iluminação é simples e refinada. Acompanha a proposta de cotidiano e e na maior parte das vezes é uma luz ambiente quente, variando entre tons sépia e ambar.

O espetáculo realizado pela Cia de teatro Autônomo em dezembro de 2005 na Caixa Cultural é uma série de recortes, um olhar poético para o múltiplo das interrelações num cenário determinado pelo paralelismo, simultâneo e fragmentado todo contenporâneo. Porque afinal, agora nada é mais uma coisa só.

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