Arte, porque a vida por si só não deu conta dela mesma





quinta-feira, 5 de agosto de 2010

OS ACASOS SOMOS NÓS


Artista plástica atuante em diversas áreas (gravura, pintura, desenho, ilustração, docente, teórica), Fayga Ostrower é uma figura importante no campo das artes e possui diversas publicações, dentre as quais destacaremos neste momento “Acasos e Criação Artística”. Neste livro, publicado em 1990, ela lançou a seguinte questão: Não existe criação artística sem acasos. Mas será que existem acasos na criação?
A autora inicia o primeiro capítulo de seu livro se perguntando se são apenas meras concidências aqueles que nos parecem acasos significativos. Logo, ela se pergunta se, ao invés de estarmos fortuitamente atravessados por um acontecimento revelador, estamos, na realidade, percebendo algo que atende às necessidades da nossa própria subjetividade.
Fayga cita um fato de sua própria experiência criativa: Certa vez, ela estava recolhendo os materiais de trabalho – chapas para as gravuras, tintas e jornais que ela usara para cobrir o chão. Num lapso de instante em que se levantava, um feixe de luz que atravessou a janela fez cintilar uma macha e aquilo lhe chamou a atenção. Ela jogou no lixo o jornal, mas a mancha reverberou de tal modo em sua memória que veio aparecer mais tarde em sua criação. E ela se perguntara porque nas outras dezenas de vezes que ela procedera da mesma forma, com os mesmos materiais, ela nunca havia reparado nas manchas ou as percebido com tamanha fascinação.
Após citar sua experiÊncia, a artista plástica cita também um desses acasos ocorridos com um colega fotógrafo, que descobrira acidentalmente, a partir de um erro, um novo conceito para seu trabalho. Ele, sem saber, utilizou duas vezes o mesmo filme e, ao revelar, descobriu imagens justapostas aleatoriamente, mas que dialogaram perfeitamente culminando numa bela composição.
De acordo com a autora, cada artista terá seu próprio repertório de acasos, mas para se tornarem acasos, eles têm de ser percebidos por nós. E ela lembra: o que é a vida senão uma série de acasos consecutivos e desconexos? Afinal, somos bombardeaos a todo tempo de estímulos de toda ordem: temperatura, movimentos, sons, cheiros, cores, texturas – imagina se pudéssemos percebê-los, todos? Esses que percebemos podem se tornar acasos..
O fato aqui apontado, é que existe em nós uma seleção. E a importância que dedicamos a certos eventos fala de algo que já está acordado, ainda que de forma não consciente, na nossa subjetividade. A isto, Fayga chamará de acaso significativo e afirmará então que estes não são, de fato, programados, elaborados ou previstos - mas sim, já eram de alguma forma esperados: “as pessoas estão é receptivas; receptivas a partir de algo que já existe nelas em forma potencial e encontra no acaso como que uma oportunidade concreta de se manifestar. Por mais surpreendentes que sejam os acasos, eles nunca surgem de modo arbitrário…”
A cada indivíduo um manancial de necessidades, de desejos, memórias, potencialidades intelectuais e sensíveis. Em cada indivíduo um estado de espírito, um aqui, um agora, uma paisagem invisível. E Fayga diz, ainda, que apenas com a maturidade é possível reconhecer-se em seu potencial criador. E que a criação da identidade se dá no ato da assimilação desses acasos significativos e no entendimento de sua importância. São as escolhas que constróem caminho.
De acordo com a perspectiva de Fayga sobre os acasos, poderíamos dizer que os acasos nos revelam mais sobre nós do que sobre eles mesmos. E, segundo a autora, isto é também um dado de maturidade, uma vez que no universo infantil a percepção se dá a partir de um todo não diferenciado, sem qualificação na unidades que, interligadas, compõem.
Ela volta a afirmar que a fonte da criatividade artística é o próprio viver e que os acasos podem ser caracterizados, portanto, como momentos de elevada intensidade existencial. E para dinamizar sua reflexão acerca do tema, a autora recorre a comentários de diversos artistas, dentre os quais destaco o trecho de Pablo Picasso selecionado pela autora: “O importante na arte não é buscar, é poder encontrar”
Adiante, o capítulo investiga a inspiração sob o ponto de vista da psicanálise e se defronta com o olhar freudiano que aponta nos processos criativos questões relativas a infância, traumas e aspectos de campos recônditos das mente. Recorrendo principalmente a Ernest Kris, Fayga afirma que, no enfoque psicanalítico, a inspiração ainda é caracterizada como um processo de passividade, uma vez que o indivíduo está sujeito as manifestações inconscientes e rendido aos processos psíquicos desencadeados na infância. Fayga, todavia, discorda das teorias psicanalíticas e coloca ainda que estas interpretações estão sempre em busca de diagnóstico e ignoram estilo e os conteúdos expressivos da imagem, qualificando-as como meras ilustrações. O maior problema aqui apresentado pela autora é que não existe arte sem estilo. E o estilo é algo que caracteriza a escolha de linguagem, característica da fase adulta. Ela não duvida da influência dos desejos, traumas, culpas e recalques em geral do inconsciente nos processos criativos, mas não o definem. Afinal, como antes já estava dito, ela acredita que o trabalho artístico acontece a partir de toda a experiência de vida do criador. E só com processo de adultificação um indivíduo se torna capaz de discernir, elaborar, aplicar as ferramentas adquiridas apontando para um fim - a criação é uma conquista da maturidade.
Com base nisto, Fayga cita a mudança estilística de Monet do Impressionismo para o Expressionismo. E diz que apenas as novas realidades internas do artistas tornaram esta tranformação possível.
Ainda sobre o olhar psicanálítico para a inspiração e os processos criativos, a artistica plástica sugere que faltam ferramentas analíticas que possam interpretar os discursos não-verbais, e por isto esta lacuna entre artes plásticas e psicanálise.
Assim, Fayga Ostrower admite que a criação compreende em seu ato a totalidade do indivíduo considerando os planos do inconsciente tão indispensáveis quanto o consciente. E lembra que mesmo as expectativas inconscientes, quando se depararm com os encontros ao acaso, são sacudidas e desencadeiam intensos processos psíquicos. Isto é, o estado de disponibilidade receptiva é ativo e não passivo como defendido pelo psicanalista Kris.
Estamos escolhendo a todo tempo. E a percepção faz também parte disso. Mas já que a maturidade e os processos de adultificação nos permitem maior potencial de construção, que nível de escolha temos quanto a nossa própria receptividade? Quanto podemos alterar nossos padrões perceptivos? Isto não constrói, também, estilo?

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