Arte, porque a vida por si só não deu conta dela mesma





terça-feira, 24 de agosto de 2010

“O INIMIGO MORA AO LADO”

Notas sobre uma guerra urbana



Parece filme, mas não é. Se fosse seria... ação? Terror? Não importa. Não é filme. Aliás, é realidade. Nua e crua. E bota crua nisso. Na manhã do último sábado, dia 21 de agosto, o bairro de São Conrado acordou em pânico. O som de disparos em todos os timbres, dos agudos aos mais graves estouros levou os moradores a se protegerem nos cômodos mais distantes das janelas e na rua a agitação e o desespero corriam de um lado a outro. Transeuntes abaixavam-se, passageiros saltaram de ônibus, supermercados fecharam as portas. Berros e tiros. Era o que se podia ouvir.


Alguns instantes depois, dentro de casa, telefones tocando. Intercomunicação dos moradores num movimento de preocupação generalizada. Lá fora, os trabalhadores da COMLURB largavam o caminhão batido pelo susto, e corriam para dentro de um condomínio. Da minha janela mesmo, eu podia ver... os policiais acuados atrás de um poste, um senhor agachado e uma moça chorando.


Minutos depois, no mesmo local (atrás da agência de carros Itavema) muda a cena... “Entra, entra, deixa! Entra, corre! O cara do carregamento tá vindo” – eram pessoas entrando apressadas num gol cinza chumbo. Bandidos ou cidadãos amendrontados?


Sons de helicópteros. A polícia aérea chegou! Agora viriam tiros de cima também? Em terra, eram setenta bandidos. Nem dez, nem vinte. Setenta. Setenta traficantes armados até os dentes, como no dito popular. Pistola, Fuzil, AR-15, granada! Gra-na-da! Alguém consegue imaginar isso num bairro de classe média alta, na rua atrás da sua casa? – O inaceitável, o inimaginável, chegou aqui. E agora eu sei o que a "L.", moça que trabalha aqui em casa, passa lá em cima, no morro. Lá não, ali. A Rocinha é minha vizinha bem próxima. – Pensei cá comigo. Minha empregada mora na favela da Rocinha, vê bandido todo dia. Aliás, vive topando com o poderoso chefão no caminho pra igreja. O negócio é que essa loucura não tinha que ser cotidiana nem aqui nem lá, nem ali, nem acolá, em direção nenhuma, em lugar algum. A Rocinha é do lado da minha casa e eu nunca me senti com uma arma apontada pra cabeça. Nem perto disso. Da janela do meu quarto, tenho visão periférica da favela. Cresci vendo aquela favela crescer. No ensino médio, meu ônibus ia ali por dentro. Meus porteiros moram ali, os funcionários do supermercado e do restaurante que eu freqüento aos domingos moram ali. O Nem, os setenta bandidos e muitos outros traficantes mais moram ali? “É... com a UPP nas outras favelas tem bandido de tudo quanto é canto aqui na Rocinha. Ficaram sem emprego, foram chamados pra trabalhar aqui” – do meu lado... A "L". me contou.


Passados os tiros ensurdecedores, a televisão ligada noticiava a invasão dos traficantes no conceituado Hotel Inter Continental, onde funcionários e hóspedes eram feitos reféns. As imagens mostravam pessoas saindo correndo, algumas de mala e cuia! (Como alguém arranja tempo ainda pra pegar a mala?) O BOPE e a polícia militar cercaram o prédio. E adentraram. “O que está acontecendo?” Ok, o jornal já havia anunciado – Traficantes saíram de um baile no Vidigal e estavam voltando para a favela da Rocinha. Estavam em vans e motos. No caminho encontraram com a polícia e começaram a troca de tiros. – mas era inacreditável.


São Conrado é um bairro pequeno. Todo mundo se conhece e às vezes parece até uma vila. Os moradores trocavam telefonemas, fosse pra saber de notícias, fosse pra dividir o espanto, o medo, o terror. Numa dessas que me ligou uma amiga, contando que na portaria do seu prédio, policiais entraram para se esquivar dos tiros. E por isso, vidraças do seu play e de um apartamento do segundo andar foram atingidas e estouradas pelas balas. Cápsulas de bala de fuzil no playground. Não me parece brincadeira de criança. Não?


Meu filho havia dormido com um coleguinha na casa da avó, moradora do Condomímio Village, que foi invadido por bandidos buscando fuga. É que o condomínio com nove prédios tem passagem para a outra rua... No fim da tarde, sem guerrilha e com aparente calmaria, ele veio pra minha casa e me contou que achou tudo muito engraçado. Eu fiquei pasma. Perguntei porque. “Ah, é que depois a gente ficou brincando de achar bandido foragido no condomínio” “Meu filho, você ficou na janela no meio daquele tiroteio?” “Não mamãe, na hora dos tiros eu fiquei brincando no corredor, isso foi depois” – As duas crianças de oito anos, ainda bem, acharam algo de divertido pra tirar dali. É que nós somos adultos e sabemos. Foi grave. Muito grave. Um morto, onze feridos. Que a gente saiba. Cadê a UPP da Rocinha?


Mais tarde, no Facebook, a mesma amiga do prédio onde se esquivaram os policiais postou: Ufa, passou o susto. E eu me pergunto: Pra quem? Dos setenta, só dez foram presos. O tráfico continua aí. O Ném vai sumir por alguns dias, mas daqui a uma semana ou duas, a "L." vai cruzar com ele no caminho pra igreja. Com ele, seus funcionários e todo o equipamento de última geração. A bandidagem rolando solta, a corrupção, o terror, a insegurança, a falta de estrutura educacional, de investimento em saúde. Mães continuam dormindo no papelão pra acordarem na fila de vagas na escola. E o ensino público diz: Não. Não há vagas. Os filhos vão para uma outra escola, onde tem sim uma vaga. Mas qualquer dia desses uma dessas mãe senta ao meu lado no ônibus dizendo: "Só teim sussego quando minha fia volta da escola. Ela tem que sair de lá com grupim das amiga,senão, minha fia, se não tem os que bate. Ih... tem fotógrafo estrupadô... Eu só teim sussego quando minha fia bota os pé em casa." Eu não tenho sossego enquanto minha filha não chega da escola... da escola...


É ano de eleição e a política dá cada vez mais vergonha, cheia de ladrões do mais alto escalão. Malandros de terno e gravata. E pelo visto nossos votos não servirão para muito mais do que substituirmos uns canalhas por outros. Desejo nulo de votar. A gente faz o que com isso?É o que estou me perguntando, de verdade. De verdade.






elA

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