O seu corpo repousava sobre a cama numa aparência inocente e de sono tranqüilo. O ponteiro anunciava dez horas e o sol encontrava espaço para iluminar levemente o céu esbranquiçado. A varanda nua sem cortinas... e os olhos se abriam, e apertados, se protegiam da luz que o dia irradiava fora da menina. Antes mesmo que qualquer movimento fosse desenhado pelo corpo, um pensamento lhe assaltou à consciência, que agora desperta, se via capaz de lembrar: Será que meu pai está melhor? - Tão logo se perguntou, decidiu que não deveria pensar naquilo: Ah, melhor não esquecer isso, vou me divertir hoje. - Aos nove anos, quem prefere pensar em fatalidades a pular corda? Meninos, talvez. Fazia sol, era uma segunda-feira, dia de escola e escolhas e, portanto, melhor seria afastar os maus pensamentos. Havia bons encontros e muitas brincadeiras que lhe esperavam ao longo das horas que ainda iam passar. Ela não queria trazer consigo o peso que quase se propôs ao abrir os olhos.
Decidida a ter um dia feliz, pulou da cama sem preguiça nenhuma. O sorriso já se instalara no rosto com satisfação e glória. Quando ia saindo pela porta do quarto, já extasiada, deparou-se com a mãe. Ela não sabe exatamente como, mas a entrada de caminhada lenta, espaçada e o humor ainda indecifrável da mãe a empurravam de volta para dentro. A avó entrava com passadas mais firmes, mas trazia consigo a doçura de sempre. Seus irmãos estavam sentados cada um em sua cama, recém despertos também, mas ainda um pouco sonolentos: "Mamãe precisa conversar com vocês." - A menina sentou-se na cama. A mãe de frente para ela e a avó ao seu lado. Havia peso naquele instante. O peso do qual fugira no seu primeiro segundo de consciência do dia. Ela temia o que estava por vir mas como por um instinto de auto-preservação fazia expirar qualquer negativa de seu pensamento: "Não é nada, não é nada. Ela não dirá nada de mau.". Tentava, não fazia.
" Papai do céu levou o pai de vocês." - Um impulso vindo do estômago se espalhou pelas pernas da menina fazendo-a pedalar numa corrida que não sabia para onde. Mas ela não se importava mesmo com o para onde, corria sem pensar. Queria, na verdade, fugir daquele instante, sair daquele peso imenso, emergir daquele inferno, como se não estando ali a dor não a pudesse alcançar. Como se fora daquele ambiente, a realidade pudesse mudar. Ela não sabia para onde, mas corria. Aquele corredor da casa decerto a levaria a algum lugar longe dali. Era nisto em que, sem pensar, confiava a menina. Por trás, um braço forte enlaçou sua barriga segurando-a com a firmeza e a exatidão de que precisava. O cólo robusto da avó lhe acolhia o choro engasgado. No acalento daqueles braços que faziam repousar sua cabeça no peito largo, foi novamente trazida para dentro do quarto. Ali, exceto seu pequeno irmão de quatro anos, todos choravam ao ouvir as explicações da mãe: Foi melhor para ele. O médico disse que se o papai vivesse, teria ficado inválido. -" O que é inválido?" - quis saber a menina. - "Invalido é quando a pessoa não pode fazer nada sozinha. Andar, trabalhar, escrever, nem comer sozinho o seu pai poderia." Ela não queria saber disso, a menina. Porque nem doente o seu pai deveria ter ficado. Afinal, todos os pais tinham saúde, andavam, trabalhavam, faziam tudo. Por que aquilo fora acontecer somente e justo com o seu pai? Mas ela não disse nada. Guardou pra si seus pensamentos pois saberia de todas as respostas que os adultos despejariam para conforto próprio. Além do que, todos já entendiam que a hora do papai havia chegado pontualmente para levá-lo. - "Uma noiva caminhando rumo ao altar de braços dados com o o vazio não pode estar sorrindo. E agora? Quem vai me levar para o altar? Terei vestido branco, um véu rastejando infindo sobre o chão, buquê de copos de leite, grinalda de princesa, a música que eu ainda não escolhi... terei um marido a minha espera, mas... quem me entregará a ele? Quem poderá dizer para cuidar de mim em seu lugar? A princesa bailarina não serei mais, ou quem irá chamar-me assim? Os cafunés das tardes de domingo, as histórias deitadas na cama, as rosas ao final das apresentações de balé no fim do ano... uma menina sem isso é uma noiva sem par antes do altar." - Isso tudo acontecendo dentro de sua jovem cabeça até a avó atentar para o pombo que acabara de pousar na varanda: "Que engraçado, ele está ali tão próximo do vidro e não pára de olhar pra cá." Ela entendeu. Olhou para o pombo e percebeu a magia que a avó propunha para transformar o instante. Escolheu então acreditar que naquele pombo que observava atento ao luto de sua família havia um pouco de seu pai. Numa tentativa de comprovar para si sua decisão mística sobre o olhar daquele momento, cutucou o vidro. O pombo não se moveu. Bateu um pouco mais forte, com a ponta dos dedos. O pombo permaneceu imóvel. Espalmou até fazer barulho e finalmente a ave atenta resolveu mirar outro canto. Mas com muita elegância e sem o susto característico da maioria. Virou-se lentamente, deu leves passadas na direção contrária a da menina e voou. Despediu-se a menina ao vê-lo partir.
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